sexta-feira, 6 de maio de 2011

Linha 66



Toda manhã
vou pro
Porto da Barra
e fico ali pela praia.
Encaro
o horizonte
até que ele acorde
e venha me
abraçar. Aí
faço de conta
que ele é meu pai.
Isso se chama
genealogia.

(um Amiri Baraka baiano)

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Linha 65


d
O que
se fa
z o horro

r de
um
a rua
gélida:

6
restos de me
rda
de cão m

uita l
ama
s
uj

a & 6
Voz
es f
eias

d
e uma
só V
ez.

(e.e. cummings refeito por mim)

terça-feira, 26 de abril de 2011

Linha 64




Se são bons os meus poemas deixe
que eles lhe sigam pela tarde

e as pessoas dirão
"Uma princesa passou por essa praça
indo ao encontro do amante(a
noite caía) cercada por tolos e altos criados"

(mais e.e. cummings)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Linha 63



já que é

Outubro
tudO

ousa fazer as gentes

(&
não o

oposto) porque

é Primav
era

Vidas levam suas

pessoas(esqueci
das

dos outros)mas

o mais
maravilhoso minha

Querida

é que tu &
eu somos mais que tu

& eu(por

ca
us

a dos Nós)

(outra tradução minha para poema de e.e. cummings)

sábado, 23 de abril de 2011

Linha 62




gig
a
nt
esc

o parque está o
co(todos long
e e aqui 1 pomb
o só eu o o

uço:é paulistan
o)o
utono &
a ch

u
va
a
chuvaachu

(poema de e.e. cummings subvertido por mim)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Linha 61




e
cco um horror
o

so
hori
zonte

sub
urbano e entre suas casas des
ali

nha
da
s

s
urge a nódoa amarelovo do sol post
o

(e.e. cummings em incompetente tradução minha).

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Linha 60




Começo, neste post, a publicar um ensaio meu a respeito de William Carlos Williams. Escrevi a coisa há uns dois anos, quando cursava a disciplina Literatura Norte-americana II, e vivia com uma bruta raiva do Hugo Friedrich. Que passou, obviamente — mas que não se tornou condescendência: falar que apesar disso ou daquilo, o trabalho de Friedrich (e de qualquer outro teórico numa tentativa de reunir algo como a "poesia moderna" sob determinados pressupotos muito estreitos) tem o seu valor é insistir no óbvio. Continuo achando que o melhor é procurar e debater os erros dessas tentativas e da tentativa de Friedrich em particular. Mas, enfim, segue abaixo a primeira parte do ensaio e logo as demais aparecem.
xxx
***
xxx
Grande parte dos estudos e das teorias que buscaram definir (ou, ao menos, discernir) as fronteiras e os limites da poesia moderna parecem incorrer, em maior ou menor grau, nos equívocos da parcialidade, seja ela histórica ou interpretativa. Dessa forma, são ignorados poetas fundamentais que, na primeira metade do século XX, produziram obras de relevância inquestionável, mas que não se enquadram nos parâmetros previamente estipulados para uma obra modernista; e dessa mesma forma alguns poetas têm seus textos deturpados por interpretações comprometidas — subterfúgio cuja utilização é facilitada pela típica obscuridade da arte moderna, algumas vezes confundida com a possibilidade infinita e anárquica de apreensão e interpretação. William Carlos Williams (1883-1963) teve a sua poesia diminuída e desconfigurada por esses dois fatores. Os preconceitos e os mal-entendidos dos quais foi vítima podem ser resumidos na informação dada por José Paulo Paes no seu "A arte de ficar em casa": citando Thom Gunn, o poeta, crítico e tradutor brasileiro afirma que "na Inglaterra" a poesia de Williams, por um bom tempo, "foi considerada algo assim como uma oleogravura meio kitsch de 'casas de tijolos vermelhos, esposas suburbanas, alegres interiores padronizados'".
xxx
Nascido em Rutherford, Nova Jersey, o poeta possui uma biografia relativamente desinteressante quando comparada à de alguns contemporâneos seus (tome-se Ezra Pound e T.S. Eliot — eles e seus posicionamentos políticos questionáveis e polêmicos, por exemplo — como parâmetros): não se expatriou e não se tornou figura central nos debates artísticos na Europa. Parece-me justo, portanto, que essa opção pela vida nos Estados Unidos seja levada em conta ao analisar a sua obra: não se trata de mera curiosidade biográfica, sobretudo se a compararmos com o exílio de Pound e Eliot e os seus respectivos contatos e envolvimentos com culturas e linguagens alheias, desenvolvidas a partir de uma espécie de desprezo ou descrença relativos à tradição literária norte-americana, notadamente recente quando comparada à européia e, no caso específico de Pound, também chinesa. Não por acaso, Williams escreveu que "Há uma fonte, na América, para tudo quanto pensamos ou fazemos." Tal opção, ao longo de sua obra, desenvolve-se em todas as esferas e níveis possíveis do poema: vocabulário, tema, sintaxe e ritmo remetem a essa aludida fonte norte-americana, criando uma poesia com data e local específicos — o que não significa uma poesia passível de se tornar datada ou insignificante quando transplantada a outras paragens. No entanto, mais do que recorrer ao lugar-comum que refere a criação do universal através do local, uma verdade tornada por demais óbvia e já consolidada pela crítica, interessa-me considerar a longevidade de Williams por outros meios, quais sejam, a intrincada relação entre localismo e internacionalismo que acredito existir em sua obra, como ponto inicial, e a sua grande influência na poesia norte-americana da segunda metade do século XX enquanto demonstração dessa longevidade.
xxx
Embora considere acertada a observação de Alfonso Berardinelli, segundo a qual "Cosmopolitismo e provincianismo são desde há muito tempo categorias sobretudo valorativas", não é como tentativa de defender a modernidade e a qualidade dos escritos de Williams que apresento, neste ensaio, evidências que considero relativizar a consideração do poeta de Nova Jersey como um artista provinciano — embora seja óbvia a sua condição de cidadão da provinciana Rutherford, o que, por si só, não implica no fechamento de sua visão e de sua prática da poesia às influências estrangeiras ao universo humano e artístico da pequena cidade do interior onde nasceu e viveu . Como o próprio afirma num verso de Patterson, "the province of the poem is the world".
xxx
De início, considere-se a estreita relação entre Williams e Pound, aqui observado enquanto representante do Imagismo, movimento que, de forma alguma, pode-se considerar como estrita ou genuinamente norte-americano: seu desenvolvimento envolve, por exemplo, a poesia da Grã-Bretanha e mesmo as suas origens podem conduzir ao verso japonês do haiku, representativo da concisão e da imagética buscadas pelo movimento. No período imediatamente posterior, Williams ainda se envolveria com os chamados poetas objectivists, uma frente vanguardista que, embora predominantemente americana, não se afasta do europeísmo da própria idéia de vanguarda. Um suposto provincianismo de Williams, parece-me, não lhe permitiria adotar essa postura anti-conservadora e pluralista — e aqui não se acredite na referência ao conservadorismo como critério valorativo, confundindo-o com reacionarismo (não se trata de aplicar conotações vulgares da política à arte). Dessa forma, percebe-se que a apreciação de Williams enquanto autor de província é uma exacerbação tão parcial quanto aquela que valoriza estritamente o cosmopolitismo das vanguardas. Em ambas as frentes, a obra não é considerada em todo o seu peso estético e histórico: por um lado, a vanguarda aparece puramente anti-geográfica e anti-histórica, desfeita das suas inevitáveis origens locais e nacionais (considere-se, a título de exemplo, o futurismo italiano e seu caminho gradual ao fascismo ou o patriotismo francês de Apollinaire, um homem sem pátria) e, por outro, poetas como Williams e romancistas como Faulkner têm diminuídas as suas opções estéticas estrangeiras e potencializados os seus temas e o seu vocabulário locais. Não por acaso, Berardinelli escreve que "os dois escritores norte-americanos mais fiéis às suas províncias, os mais circunstanciais, aqueles que mais contribuíram para a construção da identidade literária norte-america no século XX — William Faulkner e William Carlos Williams — são os mais universais e, enfim, mais genuinamente americanos do que todos os Pound e Stein."
xxx
A fidelidade de Faulkner à sua província sulista, no entanto, não o impediu de viajar a Paris — em pleno auge da efervescência cultural européia concentrada na França, assim como fizeram os não menos americanos Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway — e, conhecendo os procedimentos de Joyce, adaptá-los às necessidades de suas paisagens e dos seus tipos humanos. A rigor, o próprio Joyce já fizera transferência semelhante com a técnica conhecida através de Édouard Dujardin, transformando-se no caso mais exemplar da união entre a representação provinciana por meio de métodos estilísticos àquela altura já internacionais. Para além disso, será sempre necessário referir que a fidelidade "às suas províncias", sobretudo no caso dos romancistas citados, jamais se confundiu com a produção de obras laudatórias, concentrando-se, pelo contrário, numa espécie de desmascaramento da mediocridade e da mesquinhez locais — a Dublin de Joyce e a Yoknapatawpha de Faulkner conheceram pouca ou nenhuma simpatia em relação à suas fraquezas, algo que não ocorre de maneira tão aguda na poesia de Williams e reflete um sentido humano de simpatia e compaixão que tratarei mais adiante.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Linha 59



Vocês podem ler, na revista Desenredos, um texto meu sobre a poesia de Orides Fontela — autora que muito me serve na minha impressão/teoria de que a melhor poesia brasileira dos últimos quarenta anos foi/vem sendo feita por moças, mulheres e senhoras. Mas não é disso que trato. E nem do que desejo falar no momento: relendo o texto, percebi que não explorei as relações evidentes e possíveis entre Orides e o Imagismo, sobretudo na produção de H.D.
xxx
Além disso, após escrever e enviar o ensaio, comecei a ler a obra completa Li Ch'ing-Chao e fui percebendo que também não levei até onde poderia a leitura e a indicação do que é oriental (sobretudo taoísta) na escrita de Orides. Um dos seus poemas que cito, por exemplo, é idêntico a certo trecho de um poema da autora chinesa. Leia-se:
xxx
A água fragmentada ascende
em brancura dinâmica
e no ápice de si constrói o arco
de que perenamente cai
regressando à unidade de seu ser.
xxx
e, na tradução de Rexroth, os versos mais simples de Li Ch'ing-Chao:
xxx
(...) Water after
Its nature, when spilt, at last
Gathers again in one place.
yyys
Ficam, então, como anotações para desenvolvimento futuro.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Linha 58


Há qualquer coisa de jazz a respeito de Highway 61. Mais, talvez, do que qualquer coisa de rock. Tanto a concepção quanto a execução de "Like a Rolling Stone" e de "Ballad Of a Thin Man" (representando, aqui, também as outras canções do álbum) mostram um inegável pendor para o improviso, a idéia súbita, a crença romântica na inspiração inexplicável — que, quando supostamente surge, não é negada: o líder e a banda trabalham de forma a aceitá-la e adequá-la a uma estrutura básica e ainda tradicional de composição. Portanto, a revolução que Dylan inicia a partir de Highway 61 não é propriamente de composição, mas de conceito e execução.
o rock morreu
É assim que "Like a Rolling Stone" vai ganhando camadas e camadas de órgão que conseguem ser discretas, ainda que sejam exageradas e que seus tubos apitem sem cessar. Assim, também, os arranjos e a cadência diferenciada no andamento de "It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry" transformam uma canção folk ordinária numa verdadeira celebração blueseira — tal procedimento, aliás, estará ainda mais coeso em Blonde on Blonde, cuja música de abertura ("Rainny Day Women") é o exemplo perfeito.
o jazz morreu
Todo esse conceito, para tornar-se ainda mais ilustrativo e claro, precisa do auxílio de bootlegs e registros de shows deste período específico. No palco, Dylan parece pôr em prática tais idéias esquisitas: basta ver a transformação que "Just Like Tom Thumb's Blues" sofre nas apresentações ao vivo e como "One Too Many Mornings" (balada quase silenciosa de The Times They Are A-Changin') ganha ares quase roqueiros, com guitarras dedilhadas, baixo pesado e um órgão constante.
coltrane vive
Muitos já alertaram que, em gravações piratas e em registros de ensaios, há toda uma carreira paralela que é indispensável para quem pretende compreender e apreciar Dylan, esse Judas. Por fora dos discos oficiais de estúdio, ele se desenvolve e se sente mais livre para improvisar e variar justamente nessas gravações menos formais, mais despojadas, por exemplo, da pressão mercadológica. E é exatamente a partir de Highway 61 que se inicia esse trabalho.
bird is not dead
Dylan passa a acreditar muito mais na música como uma experiência imediata. E é justamente nesse ponto que se encontra a suprema contradição, a mais irônico dos fatos: ao eletrificar suas canções, tornando-as modernas, Dylan passa a agir da forma mais arcaica possível — viajando em turnês intermináveis, põe em prática um método de relação com o público anterior ao registro sonoro e ao conceito de álbum.
enterrem michael jackson
Suas letras — para as quais ele já encontrara um molde nos discos anteriores — tornam-se ainda mais irônicas e amargas. "Queen Jane Approximately" é um desses ataques sutis, cuja representação mais bem acabada encontra-se na longa "Ballad of a Thin Man", um blues climático e sombrio que serve de base para Dylan destilar suas ironias pra cima de um personagem (que muitos dizem ser um jornalista, outros afirmam ser um músico e alguns ainda definem como um homem qualquer) deslocado e perdido diante de fatos que não podem ser abarcados por seus conceitos curtos. A canção assemelha-se a uma carta de intenções do próprio Dylan — disposto, a partir daquele momento, após descartar o Dylan romântico e essencialmente folk dos primeiros anos de sua carreira, a forçar um tanto de confusão na quase sempre obtusa e curta música popular.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Linha 57



Quinta-feira passada foi lançado, em formato de livro artesanal, pela editora Tulle, um ensaio meu — o título: Trovar tadio. É um texto relativamente antigo (deve ter uns 3 anos) sobre Elomar, músico que muito aprecio, escritor pelo qual não tenho tanto interesse. Para quem não conhece, recomendo enfaticamente três discos: Das barrancas do Rio Gavião e Cartas Catingueiras, no campo da canção popular, e Fantasia leiga para um rio seco, para quem gosta de se meter com música erudita. São, na minha opinião, três obras-primas indiscutíveis — ou que podem ter seu valor discutido por alguém muito chato e/ou sensível às opiniões e preferências idiossincráticas de Elomar, que vê o demônio pintado em tudo que nos chega da Inglaterra ou dos Estados Unidos e acha Castro Alves o maior de todos os poetas brasileiros (ter estudado num colégio chamado Castro Alves e ter sido obrigado a lê-lo em voz alta em todas as aulas de Língua Portuguesa, às terças, na oitava série, também me fizeram ter essa opinião por algum tempo). Meu ensaio se concentra na música porque, àquela altura, seu primeiro livro, Sertanílias, ainda não havia sido lançado. Também porque, após lê-lo, não achei tanto valor em sua literatura — ainda muito confusa em sua mistura de poesia, roteiro de cinema, entrevista, prosa de ficção e um longo etc. Não deixa de ser curioso que alguém com uma visão tão tradicionalista da arte e da cultura apareça com um livro impuro desses, mas isso ficou como tema para outro momento.
eu escolhi a palavra de deus
Discos em mp3:
666
Das barrancas do Rio Gavião.
sim
Fantasia leiga para um rio seco.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Linha 56



"avuis només presto atenció
a formes triangulars"


Sumari astral é o livro hermético e ocultista de Joan Brossa. Simulando ser uma espécie de Trismegisto catalão, o poeta assume o número três e a forma do triângulo como símbolos do percurso das coisas e da linguagem. Não há originalidade alguma nisso — mesmo porque a originalidade não é um conceito aceitável para quem crê no ritmo de eterna correspondência e recriação. Dito isto, há que se assumir: até hoje, homem nenhum escreveu uma teoria poética de maior influência do que Hermes. Brossa cita A Tábua de Esmeralda quase que textualmente em alguns versos: "El mar de baix és igual que el de dalt". Fronteiras, bandeiras, linguagem, correspondência: tudo se encaixa entre as três sessões do poema — mesmo a questão do gênero aparece brevemente no verso "Amb els vestits no vull imitar res", espécie de assunção do caráter feminino como natural ao masculino e não como desejo de identificação com algo externo e estranho a ele. A segunda parte do livro, os "outros poemas", reintroduz Brossa como ele é mais conhecido: poucos versos, imagens raras, preocupações essencialmente políticas. A relação com o Sumari, no entanto, pode ser percebida — afinal, o que Brossa deseja, mais que injetar sentido poético em elementos banais, é desvendar o sentido poético oculto nos elementos banais. Isto, naturalmente, também é criação — que ele alcança por meio do emparelhamento de observações corriqueiras e de reflexões ou imagens inesperadas. Seu método, portanto, parece se pautar na vontade de que estas duas esferas "aparentes" da linguagem se revelem, aos olhos do leitor, como uma única. Não digo que não seja uma crença perigosa, um método arriscado, mas Brossa parecia ser um homem e um poeta disposto a correr alguns riscos, como se percebe pela foto abaixo.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Linha 55


Há certos autores que, de tão mal tratados e revirados pelo senso comum, não podem ser lidos: o primeiro contato com suas obras já é uma releitura. A celebridade vitimizou autores como Dante ou Kafka, por exemplo — mas, apesar de fazer a constatação, não estou muito disposto a observar o fato como um problema sério. Este tipo de releitura, considerando o leitor como uma figura relativamente autônoma e sensata, acaba incitando uma espécie de crítica imediata que alerta para a necessidade de desconfiança e para a possibilidade de redimensionar conceitos e preconceitos variados.
xxx
Estou atravessando uma experiência deste tipo enquanto leio Byron. O Lord, massacrado pela historiografia literária brasileira ao ser associado ao que de pior havia no romantismo (ainda que, de passagem, fosse aludida a sua ligação com o que de melhor havia no romantismo, a saber, a auto-ironia, o humor negro, etc.), está muito além do sentimentalismo desenfreado e tolo. É claro que a desfaçatez metrificada de Byron provocou alguns ecos no romantismo brasileiro, os mais óbvios entre Álvares de Azevedo e Sousândrade — mas o primeiro tem algo mais típico a ser ressaltado (o chororô) e o segundo esteve esquecido por um longo tempo.
xxx
Os excertos do Don Juan, selecionados e traduzidos por Augusto de Campos (com sua peculiar liberdade), têm uma força e uma eficácia raras e conseguem reunir, sob o signo do riso e da amargura, reflexões filosóficas (sempre beirando o ridículo, de forma muito calculada), observações sociais e preocupações com a forma e a fama do próprio poema que está sendo escrito, uma espécie de metalinguagem desabusada que não se importa de fazer graça com Dante, Virgílio ou Homero.
xxx
Estes trechos são chamados por Augusto de Campos de "digressões" e nenhum ou quase nenhum deles toma parte direta nas narrativas das peripécias do personagem que dá título ao poema. Segundo o tradutor, também ele observava Byron como uma "legenda padronizada" — à qual só passou a prestar atenção após o seu contato com Sousândrade, que tinha um apreço particular pelo inglês. Neste ponto chegamos a um outro problema.
xxx
Byron é citado nominalmente no famoso "Inferno de Wall Street", que faz parte d'O Guesa. Como se sabe, este é o trecho mais lido, relido e louvado do épico brasileiro porque este é o trecho ao longo do qual Sousândrade tem sua linguagem perturbada, fugindo da regularidade que preenche quase todos os outros espaços da obra e fazendo antecipações de métodos modernistas como a colagem — é, enfim, o trecho mais doido do poema. Aquele que, para a nossa sensibilidade, chama mais atenção e indica mais claramente sua ligação com aquilo que tomamos por "poesia moderna" (aqui devidamente confundida com aquilo que foi um poema modernista — e que muitas vezes pode ter sido apenas isso, um poema modernista).
xxx
A seleção de Augusto de Campos também faz esta opção em relação a Byron. Segundo ele, as digressões são aquilo que, no Don Juan, "mais interessam à perspectiva moderna". Não sei até que ponto esta postura, digamos, interesseira pode ser de fato interessante para o leitor e o poeta dos dias que andam. Este contato parcial, dando preferência sempre àquilo que mais se assemelha à nossa noção de bom gosto e eficácia poética pode ser obscurantista e é arrogante. No limite, o seu resultado mais imediato é o proselitismo e a padronização das leituras, da criação, da sensibilidade.
xxx
Não me interessa aquilo que ficou datado, óbvio — a não ser como peça pitoresca do museu de tudo. As obras poéticas, no entanto, não são produtos naturais que naturalmente perdem a validade: são fatores diversos que as elevam ou as derrubam — às vezes fatores estúpidos como a falta de amigos importantes ou de reedições. O processo que excluiu Pedro Kilkerry do simbolismo brasileiro, por exemplo, foi deste nível. Aquele que nos fez esquecer Sousândrade, porém, foi de outra ordem: falta de conexão mais óbvia entre aquilo que fazia o poeta maranhense e aquilo que buscavam os versejadores de sua época. Ele não interessava, pois, ao panorama da produção e da sensibilidade poética do momento. O fato dele ter sido reavaliado pelos leitores modernos, porém, não exime estes leitores da possibilidade de que cometam o mesmo equívoco — seja com autores contemporâneos seus ou com gente morta há trezentos anos.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Linha 54


Os desentendimentos entre lírica e sociedade estão entre os temas centrais de quem quer que se interesse, leia e pense sobre poesia. Para os não-leitores, poesia e sociedade são coisas antagônicas, que nem chegam a se desentender: vivem tão distantes uma da outra que este não é um risco verdadeiro — uma está na lua, outra na rua. Porém, para os leitores esporádicos, aqueles que preenchem as vagas nos cursos de Letras e que vão efetivamente às escolas e "ensinam poesia", a relação entre lírica e sociedade é clara, ainda que seja uma relação de confronto e negação explícitas.
xxx
Não se trata do confronto e da negação identificada por Adorno — de ordem sutil e muita vezes imperceptível numa primeira leitura. Nada disso. É que a poesia (ou qualquer arte), para estes leitores, está sempre denunciando e anunciando a falsidade, a hipocrisia, a nossa burrice. Para isso, acredito, é necessário que a arte e os artistas estejam num patamar superior, observando a coisa toda, muito pacientes e preparados para nos desmascarar. No caso brasileiro, em específico, a esta percepção se juntou uma mentalidade que é, em essência, de esquerda, anti-religiosa, supostamente igualitária, afeita às lutas sociais de minorias, etc. Não me interessa questionar esta mentalidade e seus princípios, mas sim a sua aplicação a todo e qualquer discurso. Lembro que, ainda na escola, eu e alguns amigos meus percebemos esta tendência e aí, em qualquer momento de qualquer aula, fosse após a leitura de um problema de matemática ou durante um debate sobre um poema de Álvares de Azevedo, um de nós levantava a voz e dizia, com a cara mais séria do mundo: "É uma crítica". Acho que nunca disseram que estávamos errados.
xxx
Já na universidade, presenciei um caso que, para mim, foi particularmente chocante. Assistia a uma aula sobre Nelson Rodrigues e todos lemos uma de suas crônicas. Perdoem-me por não lembrar qual delas, mas era uma daquelas em que Nelson esculhamba um "padre de passeata" e louva o Papa e a Igreja. A turma conseguiu inverter tudo e transformar o texto numa crítica à suposta hipocrisia do Papa e da Igreja e num elogio aos padres engajados em lutas sociais. Eles não pareciam aceitar a possibilidade de um autor de literatura, homem supostamente culto e esclarecido, posicionar-se de forma diferente. A professora, na ocasião, optou por não corrigir a interpretação, que havia sido de 99% da turma. Quando ela me perguntou a respeito, fiquei calado. A correção era dever dela, não meu.
xxx
Ontem, no entanto, era eu quem ensinava. Numa aula sobre poesia, preparada e ministrada junto com Clarisse, levamos e lemos um poema de Érico Nogueira. "A um vaso grego", que faz parte d'O livro de Scardanelli, é uma espécie de Arte Poética, uma teoria da arte acomodada de forma muito bela e eficiente em três quartetos.
xxx
Não fosse o traje, que atrai e oculta
e as máscaras de boca curva
não se suportaria ver o riso
ou a catástrofe da carne estúpida.
xxx
Um grito sem disfarce, sem a música
que o modula e faz enfim audível,
seria tão alto, tão agudo
que estouraria os vidros e os tímpanos.
xxx
Aquilo que sangra e que nos salva,
a única coisa que interessa,
quer chamemos de corpo, quer de alma,
se não veste uma capa, não se despe.
xxx
Após a primeira leitura, um silêncio e tanto. Na segunda, mais pausada, parando após cada estrofe, os alunos (quase todos, no início da aula, disseram não gostar/não entender poesia) começaram a interpretar o poema: tratava-se de uma denúncia à hipocrisia da sociedade, que veste disfarces e capas para enganar. Logo estavam falando sobre a política brasileira. A coisa ia se desenvolvendo neste sentido e eu e Clarisse, cada um por si só, tentávamos imaginar a melhor maneira de desfazer o equívoco sem, como se costuma dizer, "traumatizá-los" — já que uma correção muitas vezes é entendida como uma tentativa do professor de segurar a imaginação livre do estudante/leitor. Por sorte, uma aluna solitária, a partir de uma analogia que ela fez com o teatro (inferida a partir da primeira estrofe), levantou a mão e disse que o disfarce, neste poema, não está colocado como algo negativo, feito para encobrir a verdade, mas justamente o contrário. Mais alguns minutos e todos pareciam concordar que era um poema sobre a arte.
xxx
Durante a aula, tivemos que lidar e tentar alertá-los para outros mitos e clichês interpretativos: a dignidade e elevação da poesia, que faz com que certos temas sejam impróprios (como já escrevi aqui, há algum tempo), a busca d'Aquele Outro (como dizia Hilda Hilst), o sentimentalismo, a possibilidade infinita de interpretação, etc. A oficina, que durou cerca de 3h, acabou sendo excelente, apesar deste tipo de percalço — ou sobretudo por causa disso. Foi gratificante, por exemplo, quando eles desistiram de interpretar um poema de e.e. cummings, concordando entre si que não havia lógica nenhuma naquilo, mas que eram bons versos. Também achei curioso como adoraram Angélica Freitas, mesmo antes de esclarecermos quem era Rilke, e como conseguiram aceitar e compreender que Érico Nogueira havia nascido e escrito seu poema após Marianne Moore.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Linha 53


Abaixo, uma tradução que fiz para uma canção provençal anônima. O trovador não sofre dos mesmos vícios e fraquezas do tradutor e, por isso, não encerra rapidamente a sua composição por causa de preguiça ou imperícia — ele vai até onde é necessário. Tratando-se de uma alba tão singela, de rimas tão fáceis, é surpreendente notar, por um lado, a adequação da extensão da obra à situação trazida no poema (na qual o nascer do sol interrompe o desenlace da situação e do próprio tema amoroso) e, por outro, a quebra da unidade rítmica e métrica que há no exato verso do meio, no qual as sílabas caem de sete para três, provocando também em que lê o susto que o aviso vindo da torre provocou em quem amava ilicitamente.
666
666
Ouço um rouxinol cantar
do pôr-do-sol ao raiar
ouvimos, eu e meu par
........ sob as flores,
até que o guarda na torre
grita: "Partam, partam rápido!
Vejo a alba, o sol cálido"
lll
***
lll
Uma pequena jóia, sem dúvidas. Perdida na tradução, sem dúvidas. Então fiquem com o original.
lll
555
Quan lo rossinhols escria
ab sa par la nueg e'l dia,
yeu suy ab ma bell'amia
....... jos la flor,
tro la gaita de la tor
escria: "Drutz, al levar!
qu'ieu vey l'alba e'l jorn clar"

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Linha 52



Nas "Notas do autor" preparadas por Eduardo Sterzi para o seu livro Prosa, o poeta explica como estudou, leu e imitou "com devoção" a obra de Augusto de Campos e como, a partir destes estudos, destas leituras e destas imitações produziu a quinta seção da coletânea. A influência, portanto, é bem mais do que óbvia — daí não interessar tanto.
xxx
Mais curioso, na verdade, é a presença de dois poemas chineses e haroldianos na primeira seção de Prosa: "Amabilis insania" e "Pianissimo". Nestes casos, a influência ou, pelo menos, a conexão, não exatamente óbvia ou assumida, é com as traduções/recriações chinesas feitas por Haroldo de Campos e comentadas há alguns posts.
xxx
ouvir no vento ......... (além do vento)
xxx
.................................... o acaso absoluto
xxx
puro, puro
xxx
.................................... puro
xxx
.................................... puro
xxx
tão puro quanto
xxx
critais sonantes
pendurados
à janela
xxx
................................... (pretensão de nunca ser matéria)
xxx
Este "Pianissimo" possui um lastro oriental perceptível nos temas, nas imagens e no vocabulário. Aí está a natureza evocada em seus ventos e minerais que, quando em contato, provocam o som e a sensação no poeta e talvez no leitor (alguém lembrará da rã mergulhando no haicai de Bashô).
xxx
No que diz respeito à construção formal do poema, salta aos olhos aquilo mesmo de que Haroldo usava e abusava em suas reimaginações dos versos ideogramáticos: a utilização não-gratuita do branco e do espaço, a repetição de uma palavra significativa tanto no aspecto semântico quanto sonoro (puro) e o uso sutil de assonâncias (sendo janela/matéria a mais bem posta).
xxx
Naturalmente, não tenho a menor idéia se este poema nasceu após uma leitura das traduções de Haroldo — mas isto importa pouco ou nada: o que importa e inegavelmente existe é a relação entre as duas produções e a forma como uma sensibilidade "estrangeira" revigora a língua de chegada, que também é sempre uma língua de criação.